As famílias vão ter que criar uma nova experiência compartilhada, diz Christian Dunker
30 de junho de 2020
Em transmissão online do LIV – Laboratório Inteligência de Vida, Christian Dunker deu dicas sobre como pais, mães e responsáveis podem lidar com novas agendas, horários, trabalho remoto e crianças em casa durante a quarentena
A suspensão das aulas como medida para conter o avanço do novo coronavírus e a adoção do trabalho em turnos ou prática do trabalho remoto vem promovendo maior convivência e interação entre crianças e suas famílias. Se antes era comum que eles pouco se encontrassem durante a semana, as medidas para frear a curva de disseminação do vírus impuseram um convívio intenso que traz inúmeros desafios.
Parceiro do Porvir na cobertura “Educação em Tempos de Coronavírus”, o LIV – Laboratório Inteligência de Vida, programa que promove o desenvolvimento de habilidades socioemocionais para crianças e jovens em escolas, realizou, no dia 25 de março, uma transmissão ao vivo com Christian Dunker, psicanalista e professor. A live, que teve como tema “Pais e filhos finalmente juntos em casa”, trouxe a percepção do especialista sobre como famílias podem se reinventar no momento atual, como as rotinas podem ser adaptadas, o que fazer em casos de pais separados e guarda compartilhada dos filhos.
Foto: Acervo pessoal
Confira abaixo os principais trechos da conversa com o psicanalista:
LIV: Temos recebido muitos questionamentos sobre como as famílias podem se reinventar nesse momento e quais são os principais problemas e desafios que surgem em tempos de confinamento. Qual é sua visão de forma geral?
Christian Dunker: Devemos começar considerando o caráter totalmente inédito do que estamos vivendo. É a primeira vez que estamos confinados dentro de casa por um período que pode ser bastante longo, com uma indeterminação do que pode acontecer. Isso reformula nosso cotidiano que, em geral, é marcado por uma forte divisão entre casa e rua. Precisamos aproximar essa distância entre os universo privado e público. É preciso muita tolerância, aceitação e respeito porque as crianças vão, eventualmente, sofrer mais do que os adultos, já que boa parte das interações presenciais que elas precisam são proibidas nesse momento. Mesmo que a gente entenda e reconheça a realidade sanitária, o nosso psiquismo não aceita as coisas tão facilmente. O momento pode ser muito interessante para reconfigurar as relações familiares, porque famílias precisam entender que há uma tarefa pela frente e isso não será feito por decreto e sim com muita conversa. Françoise Dolto, uma psicanalista muito aceita que viveu na França durante ocupação alemã, tem um conselho: diga a verdade para as crianças. No tempo delas e com a linguagem adequada, mas não esconda seu medo e incerteza. Crianças são muito mais resilientes, fortes e capazes de colaborar do que imaginamos.
LIV: Qual a importância de falar sobre pais e filhos finalmente juntos em casa?
Dunker: A importância é grande porque, no fundo, é um assunto sobre o qual nunca nos debruçamos muito extensamente. Temos uma discussão nacional sobre “homeschooling” e educação a distância, principalmente quando se considera o ensino universitário. Entretanto, parece que as pessoas estavam muito fixadas no aspecto tecnológico da novidade e pouco tocadas pelo fato de que isso altera completamente a circulação dentro de casa, e também a repartição entre as esferas privada e pública. Além disso, interfere na rotina de trabalho e de cuidados com a casa. O encargo que os filhos representam para os pais é também uma novidade, por isso a expressão “finalmente juntos” no título da live do LIV. As famílias vão ter que criar uma nova experiência compartilhada. É uma nova intimidade que está sendo proposta. E só construímos isso com esforço. Essa realidade foi ocultada na conversa das pessoas sobre tecnologias virtuais, redes e ensino a distância. E agora despencou nas famílias e nas escolas desavisadamente.
LIV: As pessoas estão buscando fórmulas para administrar horários, conciliar o cuidado e filhos pequenos com o ensino em casa e com o trabalho. O que você diria para pais e mães que não estão conseguindo organizar seu tempo?
Dunker: Primeiro, há uma violação de expectativas. Nós imaginávamos que teríamos mais tempo por trabalhar de casa e que as demandas seriam diminuídas. Isso não está sendo exatamente verdade, pois no ambiente online rendemos menos. Nos primeiros dias tendemos a ter uma desorganização atencional, ficamos mais nervosos e inquietos, tendemos a ter insônia e nos alimentar mal. Da mesma forma que crianças estão precisando reinventar a escola, precisamos reinventar o trabalho. Teremos que ser tolerantes com as interrupções. Essa pode ser uma oportunidade de introduzir as crianças no nosso universo laboral. Também é importante que as famílias deem suporte a esse processo de reformulação das aulas que as escolas estão passando. Teremos que participar da escola de um jeito que nunca fizemos. Além disso, um conselho para momentos de estresse, quando chegamos perto de perder a razão, é a descontinuidade, como ir pensar no banheiro. A situação de estar no mesmo ambiente gera algo que poderíamos chamar de deslizamento de afetos e pensamentos. Se você está com raiva, vai ficando com mais raiva até gritar e perder a cabeça, porque nós perdemos as pausas que tínhamos no dia: o cafézinho, a pessoa que liga, os momentos de dirigir.
LIV: Estamos falando de um isolamento, mas parece que a convivência familiar nos invade o tempo todo. Como as famílias podem ajudá-los nesse momento e evitar crises de ansiedade e depressão?
Dunker: Estou tentando organizar uma campanha para que pessoas continuem suas terapias online, por telefone ou busquem a ajuda de escutadores, não precisa ser necessariamente um psicólogo ou psicanalista, existem muitos grupos de apoio. Por outro lado, em alguns casos essa situação cria o que chamamos do efeito terapêutico do real, que pessoas que vivem com medo de que algo vai acontecer percebem que a catástrofe é aquilo: nada mais e nada menos. Algumas situações psíquicas serão favorecidas, outras serão mais sofridas. Quando o assunto são os adolescentes, acho que algo que podemos fazer é a formação de certos compromissos com os cuidados da casa. Quem lava a louça, quem leva o lixo, quem passa roupa. Cada um precisa descobrir sua função para que a gente possa sair dessa juntos. Se conseguirem enxergar um sentido de responsabilidade coletiva que ultrapasse o núcleo familiar, acho que teremos um momento formativo dessa geração de adolescentes.
LIV: É um momento especial para refazer esses combinados familiares?
Dunker: Essa pode ser uma oportunidade para famílias literal e metaforicamente arrumarem a casa, suas gavetas, aquele baú e papéis que estão olhando para você há anos. A prática de arrumar-se, de encontrar o seu momento, fará parte dessa reformulação familiar que vamos viver, talvez aproximando as famílias. Crianças e adolescentes são muito impactadas quando o adulto que os protege mostra sua fragilidade real. Isso convoca para uma função restaurativa que pode deixar frutos muito importantes para o resto da vida.
LIV: Como lidar com emoções de pais e mães que estão distantes considerando a dificuldade de deslocamento nesse momento e uma eventual proibição do deslocamento?
Dunker: É uma situação delicada para famílias em crise ou em casos em que a guarda compartilhada não está funcionando tão bem assim. Existem os métodos de falar pelo computador ou celular, mas também uma experiência muito bonita são pais e mães que escrevem diários para seus filhos ou gravam áudios contando histórias de famílias, por exemplo. Uma ação que pode ajudar a mitigar essa situação e fugir um pouco desse modelo de conversa de “agora é hora de falar com seu pai/mãe”, é ligar a sua tela e ir fazer suas coisas. A criança está brincando, você pode ler ou assistir um jornal, dá uma olhada de vez em quando, comenta alguma coisa. Essa presença compartilhada, ainda que em silêncio, é muito importante especialmente para crianças menores. Não adianta nesse momento termos sentimentos culposos, pensando que as crianças vão “ficar marcadas”. Elas são seres extremamente resilientes, que sabem o que é uma situação de perigo e privação.
LIV: Como você vê essa iniciativa de promover lives com especialistas para pais e envolvidos com a educação no Brasil?
Dunker: Acho fundamental porque toca em três problemas que precisam ser enfrentados. O primeiro é a distância que existe no Brasil entre o debate, a circulação e o universo cultural da universidade e a vida nas escolas. É inadmissível que nossos alunos se dediquem e se sacrifiquem tanto para entrar num espaço onde, muitas vezes, nunca ouviram ninguém da universidade falando e não sabem o que é uma sala de aula. Isto provoca uma decepção e um choque cultural. O primeiro passo é que o muro entre escolas e universidades abaixe. O segundo benefício é que a relação das escolas com as famílias está se alterando. Cada vez mais presentes, é também função dos colégios ensinar os pais. A verdadeira escola aprendente não ensina apenas para os alunos, mas também para seus funcionários, pais e fornecedores. A ideia da escola como uma comunidade é um segundo ponto fundamental. O terceiro aspecto é: precisamos qualificar o debate sobre o ensino e a aprendizagem. É necessário fazer com que as discussões, que são, muitas vezes, poderosas, rigorosas e bem feitas pelas escolas, sejam disseminadas. Para que as informações entrem no debate público, é fundamental que deixem de ser um saber privado para se tornar um patrimônio de todos, um bem cultural comum.
Fonte: Porvir